domingo, 29 de novembro de 2009

A nossa escola



Há dias em que varrido pelo vento da memória, não me consigo abstrair e mergulho numa infinidade de recordações eternamente inapagáveis. Efeitos da doentia saudade de um viajante no tempo, tocado pela mente sempre que a visão ou audição assim o exijam. Tudo a propósito de alguns dias atrás, ter observado num canal televisivo, aquando das eleições presidenciais em Moçambique (seção de voto) a antiga Escola Primária Comandante João Belo (Filipe Samuel Magaia ), a nossa escola. Sim a nossa escola, porque lá estudei, os meus irmãos e os grandes companheiros que por lá passaram. Que será feito deles? Um estabelecimento de ensino muito bem projetado, em que os arcos dos muros, corredores e janelas se enquadravavam em perfeita harmonia, embelezado por uma  considerável área de recreio bem arborizado, onde não faltavam as mesas (em cimento ) para os lanches. Apenas separado por um muro, funcionava a ala gémea destinada ao ensino feminino.  A nossa escola estava localizada na zona da Malhangalene, um dos bairros mais carismáticos da antiga Lourenço Marques. Recuo ao início da década 60. Fazia parte de uma numerosa turma multirracial, que timidamente aprendia a conjugar as frases do idioma de Luís de Camões. Ainda me lembro da minha carteira, junto a uma das janelas  emolduradas  em arco, trabalhadas na melhor madeira local por onde o sol africano se entranhava , beijando os vidros, numa espécie de boas vindas. No teto da sala de aulas, figuravam duas potentes ventoinhas que nos aliviavam do calor sufocante. À entrada da porta principal, situava-se a secretária  de quem tinha a nobre missão de ensinar, assente sobre um largo estrado que tinha a particularidade de demonstrar aos alunos a heráldica  dos pedagogos , como melhorar a observação dos alunos. Na retaguarda da secretária estava colocado o velho quadro preto de ardósia, sobre o qual pendia  um crucifixo. Nas paredes laterais estavam afixados os caixilhos, com as figuras dos governantes do Estado Novo. Junto aos cantos da sala, situavam-se os mapas de Portugal Insular e Ultramarino  que nos faziam crer que este minúsculo país, se estendia do Minho até Timor. Sem desprimor  para quem lá lecionou , aquele que certamente mais nos marcou, foi sem dúvida o professor Macedo, um homem bondoso, que se distinguia pelo fato preto e camisa branca, que envergava em sinal de luto eterno pela mulher amada. Para encobrir a sua calvície, usava um chapéu preto. Após o toque para o recreio , era ele que no período do lanche matinal, trazia debaixo do braço uma bola de basquetebol. Naquele enorme pátio coberto e ladeado de frondosas mangueiras, disputavam-se porfiados desafios, com claques bem definidas. Convém citar que  aqui jogaram grandes nomes e referências da modalidade (Leonel, Eustácio,Hélder, Zé Gordo e outros nomes que já não me ocorrem) e que a nossa escola arrebatava quase sempre os títulos, nos campeonatos escolares. O grande mestre foi também o inventor do célebre hóquei de palmadinha, que se jogava com uma bola de voleibol e cujas balizas eram dois enormes bancos de madeira, colocados em posição horizontal. Quem já não se lembra do jogo ?O sábado era o dia consagrado, às atividades da Mocidade Portuguesa, às quais era obrigatória a participação. Não gostaria de terminar a minha passagem pela escola, sem mencionar o seu diretor, o professor Renato Silva, um homem baixo que carregava mais peso que a sua idade, trajando quase sempre o inseparável fato castanho listado, que sacudia habitualmente após bater a porta da sua relíquia, um buliçoso  Austin A.40. Quando sorria, era sinónimo de bom tempo no canal. Ao invés era temível, essencialmente quando entalava a língua entre os dentes. Era sinal de tempestade. Compreendo que a minha meditação já vai longe, mas como recordar é viver, jamais esquecerei como era linda a nossa escola.

Manuel Terra

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Terra molhada.



Dezassete de Agosto de 2009, à noite, algures numa ilha do Índico, tentava a reconciliação com o sono, sem sucesso. Uma pontinha de ansiedade facilitava a vida à insónia. Ainda me lembrei das noites de 24 de Dezembro, quando as crianças recebiam as prendas de Natal a 25. Bom, mas desta vez, não havia sapatinho debaixo de um pinheiro à espera de volumes de fantasia. A verdade é que para o dia seguinte, estava previsto trocar os sapatos por umas barbatanas e praticar snorkeling (uma espécie de mergulho superficial, muito indicado para principiantes, de todas as idades), na ponta de Santa Maria, da ilha de Inhaca, onde os corais abundam. Já me imaginava como uma espécie de pato Donald no meio de um aquário.
Na manhã de dezoito, estava eu junto ao jipe que nos levaria até à outra ponta da ilha, a ultimar os preparativos para a saída, que é como quem diz, a testar as barbatanas, óculos e snorkel, quando do céu veio uma balde de água fria. A chuva parecia estar a instalar-se de armas e bagagem naquelas paragens, para desânimo dos excursionistas. A saída ficou suspensa. Confesso que não tive tempo para pessimismos, pois aquele cheiro a terra molhada, acicatou o meu refúgio das lembranças. Aquele quadro que me fez recuar muitos anos, lembrou-me tórridos dias de verão, naquelas terras, onde o calor sufocante aconselhava o refúgio numa sombra. Mas, por vezes, quando o passo era já cada vez mais curto, desabava do ventre de algumas nuvens compreensivas, a impetuosa água que parecia caída do céu como dádiva. Naquela ocasião, ninguém retirava em debandada, e muito menos abria o guarda-chuva, pois cada gota caída era uma espécie de carícia para o corpo. Sabíamos bem que dali a pouco o sol se sobreporia às nuvens, e a roupa encharcada em breve secaria.
E deambulava eu pelas memórias, quando o astro rei subiu ao seu trono de novo, para gáudio dos meus companheiros de mergulho, que assim puderam ver as suas expectativas coroadas de êxito.
Ah, mas se aquelas águas, a viver o seu inverno, fossem mais piedosas, não teria eu, ficado com elas, só pelos joelhos.
Mas os corais estavam lá, os peixes multiformes e policromáticos, também, e até duas tartarugas de bom porte nos deram as boas vindas.
Abençoada terra!

Aurélio Terra

sábado, 7 de novembro de 2009

O velho Bazar



Deslumbrado pelas imagens e histórias, que nos trazem à memória aquelas recordações de outrora, a  viagem no tempo leva-me até ao antigo Mercado Municipal Vasco da Gama, hoje Mercado Central de Maputo. Trata-se de um edifício de traça colonial ,construído em 1901 em plena baixa da capital moçambicana, onde o cimento, estruturas metálicas bem trabalhadas e madeira se fundem em perfeita sintonia. Quantas vezes entrei por um dos quatro portões, muitas vezes acompanhado pelos meus pais para necessárias compras. Recordo a azáfama  no seu interior, povoado de vendedores e vendedeiras que representavam todos os continentes, numa simbiose de raças e culturas. Em pleno Verão, era vê-lo apinhado de turistas sul africanos e também muitos rodesianos, transmitindo mais vida aquele espaço. Era usual caminharem pelos corredores, descalços, trajando simples calções de caqui ou desportivos, camisolas interiores coloridas e chapéus de palha. Ao tiracolo traziam sempre a inseparável  Kodak para recolherem fotografias para os seus álbuns de férias. Pelo meio sucediam-se as inevitáveis pisadelas que nos obrigavam eticamente a pronunciar o tradicional sorry. Ouviam-se os pregões  das mamanas (mulheres negras adultas) que anunciavam a venda de frutas tropicais, marisco e víveres do mar. Como era agradável  sentir no ar o aroma daquelas suculentas  e apetecíveis  mangas, tingidas de amarelo e vermelho lacrimejando uma espécie de resina, papaias sarapintadas, ananases e abacaxis enfeitados com as suas coroas de folhas, as afamadas tangerinas de Inhambane , citrinos e cocos apaladados. Regateava-se o preço de todos os produtos. Num dos recantos do mercado, as panificadoras, tinham os seus pequenos depósitos de vendas onde se podia comprar bom pão e os famosos scones  e outras doçarias. Também  não faltavam as bancas dos produtos hortícolas e os poemas dedicados aos agriões dos viveiros do produtor Louro. A ala dos indianos vendia as maçãs, peras, uvas e pêssegos, fruta importada da cidade do Cabo. Das prateleiras das suas lojas, eram vendidas ao cartucho as especiarias que nos invadiam as narinas, muito especialmente o pó de caril que fazia as delícias de uma gastronomia recomendada. Pertenciam a esse clã as lojas de vendas de roupas tropicais, capulanas garridas, todo o tipo de bugigangas, brindes, missangas e artesanato. Junto a um dos portões ficavam os postos de venda de aves. Não esqueço que junto ao portão da fachada, se achava o popular café do “Xico” do bazar que tinha a singular particularidade de por vezes servir cafés, sem colher .Nas mesas do fundo em tabuleiros já gastos pelo tempo, jogavam-se partidas de damas, muito acaloradas. E se me permitem, por hoje cabe-me encerrar o bazar, dispensando as badaladas do paciente sino de latão. Acho-o por momentos vazio, aquele centenário bazar sempre jovial aos olhos de quem bem lhe quer, que tudo vendia à exceção da simpatia, que era oferecida pelos seus arrendatários...

Manuel Terra

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Sol aos quadradinhos



Se há locais onde muita gente espera nunca ter frequentar, esses são certamente aqueles donde o sol se pode ver aos quadradinhos. Presumimos pois, pelo que simboliza a expressão “sol aos quadradinhos” que quem vê o sol desta forma, não será pessoa muito recomendável. Mas, nem sempre é assim. Posso afiançar que fui obrigado a concluir, no verão deste ano, que há muita gente de bons costumes que optou por ver nascer o sol aos quadradinhos, em detrimento de uma exposição plena ao astro rei.
Refiro-me aos habitantes da cidade de Maputo, que em muitas zonas, vivem em apartamentos devidamente fortificados. Quem está de visita a esta cidade, não pode deixar de reparar no procedimento inusual que os seus habitantes adoptaram ao fechar as suas varandas de alto a baixo com um gradeamento à prova dos “irmãos Metralha”. Não consta que por estas paragens vivam muitos “tio Patinhas”, mas acontece que os amigos do alheio deitam a mão a tudo o que seja uma mais valia aos seus parcos rendimentos.
E se o morador de um primeiro andar não hesita em proteger-se com essas grades de material ferroso, logo o vizinho que por cima dele mora, sentindo que aquelas grades se podem tornar numa escada de acesso fácil à sua habitação, fortifica também a sua varanda. Ora, um procedimento assim, provoca uma reacção em cadeia que faz com que o morador do último andar (seja ele um 10º piso, mais coisa, menos coisa), também sinta necessidade dessa protecção.
Fiquei mesmo com a sensação que o “homem-aranha” se tinha passado para o lado do mal e que viveria por aquelas paragens. É que conseguir chegar, através das varandas blindadas aos últimos andares de alguns “arranha céus”, é obra só ao alcance desse super herói.
Ao olhar para esses edifícios, repletos de grades, umas mais lineares, outras mais trabalhadas, mas já tomadas de assalto pela corrosão, pareceu-me estar na presença de prédios assombrados.
Esta é uma realidade que faz com que o visitante se sinta inseguro em algumas áreas da cidade.
Calcorreei a pé muitas das avenidas de Maputo, ignorando conscientemente o sentimento de insegurança.
O amor por essas terras venceu esse receio!

 Aurélio Terra