terça-feira, 27 de setembro de 2016

O Drive in



Tenho ainda bem presente no acervo das minhas recordações, o roteiro sentimental que me leva às vivências quotidianas da minha geração, a fazer-me lembrar quanto fomos felizes naquela terra, onde o calor, as paisagens e as gentes de todas as raças, tornaram a antiga Lourenço Marques numa espécie de paraíso na terra. Para lá do trabalho, estudos e convívio, havia sempre tempo para os hobbies e diversões. Restam poucas dúvidas sobre a paixão que os laurentinos nutriam pela multiplicidade da prática de modalidades desportivas, música e cinema. É concretamente para o cinema que eu me direciono, lembrando o ritual das matinés frequentadas maioritariamente por estudantes até aos 17 anos de idade, classificação máxima que nos aproximava do estatuto de pequenos adultos. Recordo-me que no início dos anos letivos ao adquirirmos o material escolar nas papelarias, havia lugar à oferta de pequenos blocos, mata-borrões, calendários escolares e, o inevitável Bilhete de Identidade para teatros destinado a estudantes, que teria que ser preenchido nos espaços vazios, a colocação da necessária fotografia e que teria validade, depois de autenticado nos estabelecimentos escolares e visado pelas casas de espetáculos. Havia em Lourenço Marque, muitas salas de cinema, desde o velhinho Varietá  (demolido na década 60) até aos modernos estúdio 222 e o Dicca. As grandes novidades da chamada sétima arte, vinham da vizinha África do Sul e depressa chegavam às muitas salas de cinema da capital, verdadeiro ponto de encontro da juventude. A história do cinema não ficou só circunscrita aos cineteatros , associações e alguns salões paroquiais, locais de projeção de muitas fitas. No ano de 1972 os americanizados drive-ins já implantados em Johannesburg , ditaram a construção de um moderno drive in que viria a ser implantado no recém criado Bairro de Benfica, zona arredora  e futuro dormitório da cidade de LM. Para quem não se recorda, ficava na estrada nacional que ia do Bairro do Jardim até à Vila de Marracuene, passando pelo Bairro do Choupal. Numa zona aterraplenada para o efeito, foram traçadas várias pistas em anfiteatro, devidamente sinalizadas, destinadas ao aparcamento dos veículos, permitindo que se pudesse assistir aos filmes, dentro do interior dos automóveis. A banda sonora da película em exibição, era disponibilizada através de auscultadores fixados em suportes metálicos. Nas noites mais cálidas, os assistentes podiam  observar a sessão sentados em cadeiras de lona, ao ar livre. Incómodo, só mesmo o aparecimento dos indesejáveis mosquitos. O Drive in permitia que fossem servidas refeições “fast-food” , fornecidas pelo restaurante do recinto. Na parte avançada do espaço, figurava o  ecrã  gigante onde era projetada a película. O parque do Drive in registava grande afluência de público, um tanto pela inovação de ver o cinema de uma outra  perspetiva.  Na bilheteira era cobrado à entrada um montante pela entrada do veículo e, uma importância por passageiros transportados, despesa bem superior ao que se pagava então para se ir assistir a um filme, numa sala de cinema tradicional. Por algumas vezes, tive a oportunidade de na companhia de amigos me deslocar ao Drive in, para assistir a películas que acabavam de fazer furor, nas melhores salas de espetáculos da Europa. Seguramente o Drive in, era um cenário ideal para jovens namorados ou casalinhos, verem cinema de uma forma mais intima. Citando Richard Hollingshead Jr. o grande mentor da ideia, o cinema ao ar livre foi como encontrar a forma feliz de ver grandes estrelas, debaixo do espaço celeste cheio delas. Também lá para o céu de Benfica,  o esplendor do luar e as estrelas cintilantes quebravam o breu da noite que se abatia sobre o bairro, parecendo observarem o desempenho dos grandes astros de Hollywood , na tela gigante do Drive in. Aquele lugar de sonho, fará para sempre parte do espólio das minhas memórias, numa cidade onde o modernismo e o progresso, eram uma constante da vida.

Manuel  Terra

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Praça Mac Mahon




À medida que o tempo vai avançado de forma implacável e, os cabelos brancos se vão acentuando, mais saudosos nos tornamos do tempo que já não volta, do qual guardamos recordações irradiantes de uma época, de onde ficou um pouco de todos nós. É um passado tão rico de vivência, que as recordações emergem a todo o momento. A evocação de hoje vai para a Praça Mac Mahon (atualmente  Praça dos Trabalhadores). Que saudades do remoto ano de 1958, quando aportei à antiga Lourenço Marques, na companhia da minha mãe, irmão e demais familiares. No Cais Gorjão esperávamo-nos o meu saudoso pai, que para lá embarcara dois anos antes. Foi em festa (como sempre acontecia) que o paquete Angola foi acolhido. Depois do desejado reencontro, foi tempo de se recolherem as bagagens  e palmilhar pela zona portuária ,até ao amplo portão de ferro e pisar o asfalto da Terra Prometida . Lá estava como que nos abraçando, a Praça Mac Mahon, outrora Praça Azeredo quando no início do século XX se edificou sobre um terreno pantanoso de poeira avermelhada, que a mão do homem soube transformar, na altura em que se esboçava o plano de urbanização  e expansão da cidade. Era efetivamente a praça mais emblemática da cidade, embelezada pela sua estação dos caminhos de ferro de traça invejável inaugurada em 1916, um monumento de excêntrica conceção constituído pela sua fachada ornamentada  com uma cúpula bem trabalhada em cobre, mas que o verdete lhe emprestava uma cor esverdeada, nada despropositada. Dois blocos simétricos de dois pisos, completavam-na . Uma obra prima da criatividade do arquiteto português Alfredo Lima que trabalhou em equipa com Mário Veiga e Ferreira da Costa e, que por vezes erradamente alguém atribui a Gustave Eiffel. Cem anos depois, a justa consagração como a mais bela estação do continente africano, segundo o critério da conceituada revista norte americana Newsweek, que também a definiu como a sétima mais bonita do mundo. Das suas várias gares partiam composições para a Suazilândia, África do Sul e Rodésia (hoje Zimbabwe)  as chamadas linhas internacionais e para Goba,  Ressano Garcia e Limpopo das linhas internas. Em exposição encontravam-se duas velhinhas locomotivas a vapor e, segundo o que me dizia um velho amigo, por lá esteve uma locomotiva que circulou no Norte, concretamente uma Michelin, que tinha a particularidade de ser equipada com pneus de borracha de aderência aos carris.  A Praça Mac Mahon era também o términus das várias carreiras dos machimbombos municipais, que demandavam à Baixa. Bem no centro da praça, situava-se a estátua de homenagem aos mortos da Iª Grande Guerra, militares que enviados da Metrópole integrados no Corpo Expedicionário a que se aliaram  moçambicanos , tombaram em combate em várias batalhas no Norte, travando as arremetidas das tropas alemãs. Em 1935 era inaugurada o monumento com cerca de 16 metros de altura, esculpido em pedra cábris( provavelmente embarcada em Lisboa) onde na parte superior estava representada uma mulher, que tinha a seus pés uma longa serpente. Histórias havias muitas, mas que no fundo se centravam à volta de uma heroína ,  que teria afogado  o réptil numa panela de água a ferver contendo papas e , que aterrorizava a população residente no pantanal. Na parte inferior, estavam localizados os painéis alusivos a quatro batalhas travadas no norte de Moçambique, onde soldados brancos e negros lutaram destemidamente contra os invasores. A base da estátua fechava em forma de círculo. A Praça Mac Mahon estava interligada com a histórica Praça 7 de Março (hoje 25 de Junho) por três vias de acesso, bem conhecidas dos laurentinos. A Consigleri Pedroso (hoje Rua da Revolução), que tinha logo nas esquinas viradas para praça dois prédios concebidos pelo traço do grande arquiteto Miranda (Pancho) Guedes, que deixou obra em Moçambique e nos países vizinhos, homem intérprete da arquitetura moderna, com grande liberdade criativa que projetou o prédio que conheceu duas ampliações, com esquina também para a Av. General Machado (hoje Av. Guerra Popular-que liga a Baixa à Alta)de forma fascinante. As suas varandas rendilhadas e a parede lateral trabalhada com pequenas pedras brilhantes( provavelmente  seixos polidos ) a configurarem contrastes de um vasto relevo, que inspiram motivos gráficos africanizados , quiçá influenciado pelos seus dotes para as artes plásticas. Uma autêntica obra de arte , a que o betão deu beleza. Ainda me lembro do outro ousado prédio, construído na outra esquina nos meados da década 60, em que foi necessário durante algum tempo drenar a água salgada, para iniciar a sua construção. Muitos eram os curiosos de ocasião, que observavam à distância o trabalho do potente bate estacas, que parecia estremecer tudo em redor. A Consigleri Pedroso caraterizava-se pelos seus blocos e lojas comerciais, muitas de traço colonial como os Armazéns Catoja & Saldanha, Papelaria Spanos e a Casa Fabião, a resistirem aos avanços do progresso que ia  destruindo os vestígios do passado e que só agora velhas fotografias, ajudam a perceber o que ela foi nos primórdios do século XX. A Av. 18 de Maio(Hoje Mártires de Inhaminga) era em toda a sua extensão, uma plataforma da atividade portuária, com largos armazéns pertencentes a agentes marítimos .A faixa encostada à vedação do porto era reservada à praça de camiões de aluguer, contratados para carregarem mercadoria retirada pelos  guindastes. A rua mais célebre era a Rua Araújo(hoje Rua de Bagamoyo) reflexo do que era a vida noturna de LM. Quando o sol se despedia e a noite já ia adiantada, a rua aclarava com os disparos dos néons que pareciam comandados pelo som das músicas que entoavam do interior dos cabarés, night clubes, dancings e bares americanos. Nos passeios fixavam-se placards anunciando as atrações da noite. Os noctívagos frequentadores, eram maioritariamente marujos de várias nacionalidades que ali afogavam a solidão de muitos dias de mar, mas também não faltavam os fascinados locais ,atraídos por cançonetistas, bailarinas e prostitutas. Nem só de boémia  e entretenimento vivia esta artéria, porque durante o dia estavam abertos estabelecimentos comerciais, cinemas , instituições bancárias e lá despontava o velhinho Hotel Carlton, uma referência do passado. Quando o sol raiava, a animação terminava ; a Praça despertava com o movimento da  chegada dos primeiros machimbombos apinhados até ao estribo, de estivadores que iam pegar no  turno matinal no Cais Gorjão, vindos das zonas suburbanas da cidade. Depois o bulício aumentava à medida que se aproximava a abertura dos estabelecimentos comerciais, repartições públicas e escritórios, nomeadamente os dos despachantes oficiais, justificada pela proximidade ao porto marítimo. Era local de passagem obrigatória para muitos turistas vindos de fora, que não perdiam a oportunidade de captarem excelentes instantâneos, porque na verdade motivos não faltavam. A Praça Mac Mahon fez parte do meu quotidiano, tantas foram as vezes que a calcorreie . Recordo-me que aos fins de semana, depois de assistir à sessão da meia noite , no Cinema Dicca ou nos Estúdios 222, películas que terminavam já de madrugada, localizados na Travessa Varietá transversal à Rua Araújo, eu e um grupo de amigos concluíamos a noitada num espaço de restauração de referência sito na estação ferroviária, onde às três da manhã era possível comer um bitoque com bife de búfalo, carne importada da África do Sul e beberricar umas cervejas. Quem um  dia conheceu a Praça Mac Mahon, um verdadeiro ponto de encontro de muitos laurentinos, jamais a esquecerá como um marco da história da cidade, por onde as suas gentes circulavam sem stress , entre o trabalho e o lazer.

Manuel Terra

sábado, 13 de fevereiro de 2016

O Mercado de Xipamanine



Os relatos que me vão chegando, do popular mercado de Xipamanine, dão conta da situação caótica do próprio bairro, em que viver no seu interior é uma autêntica aventura e, com o seu bazar a rebentar pelas costuras. Os vendedores já não encontram espaço no recinto, tornando-se por tal  cidadãos ambulantes, disputando os passeios e rotundas, dificultando o caminhar dos transeuntes e condicionando o trânsito rodoviário, provocando constantes engarrafamentos.  Xipamanine é uma espécie de terra prometida, onde muitos vendedores chegam e poucos partem, numa espécie de luta pela sobrevivência. Os produtos mais diversos são colocados no chão, sobre mantas ou esteiras e estão sujeitos à chuva impiedosa ou ao calor abrasador, colocando a saúde pública em risco. Paro por momentos para refletir e, rumo ao caminho das recordações. Lembro-me perfeitamente do popular  Mercado de Xipamanine, que tinha a particularidade de estar aberto ao domingo matinal, permitindo  aos  laurentinos a possibilidade de fazerem compras e levarem pescado fresco para o almoço. Foi edificado na década 30 e retenho a imagem de um complexo de área considerável, ladeado por um extensivo gradeamento e com a entrada principal virada para a artéria Irmãos Roby. No seu interior destacava-se as bancas para a venda do peixe, marisco e bivalves marcados pelos sabores do Índico, protegidas por uma cobertura conveniente à proteção dos postos de venda. Soltavam-se os pregões a anunciar preços de arromba e tudo acabadinho de pescar. Os compradores iam regateando e comprando. Havia depois três corredores, onde alinhavam as lojas de artesanato , louças , outros utensílios e venda de capulanas de encher o olho. Muitas bancas, onde se vendiam temperos, condimentos e especiarias indianas, num ambiente de cores, sabores e aromas que enriqueciam a sua gastronomia. Também não faltavam pequenas bancas de madeira, coberta por toldos  já descoloridos pelo tempo, onde predominava a venda abundante   de grande qualidade de frutos tropicais , como também toda a espécie de produtos hortícolas, acabados de chegar de madrugada nos autocarros do Sul do Save e dos Oliveiras, vindos das áreas limítrofes da cidade, que transportavam no seu tejadilho vasta  mercadoria . Lá se viam as chamadas gaiolas, feitas  com pequenas galhas e ramos , onde vinham as galinhas a cacarejar e os galos a anunciar o nascer do dia. Os galináceos tinham grande procura, porque eram alimentados só com produtos da terra e dai as famosas galinhas à cafreal, prato de referência em todos os estabelecimentos de restauração. Não faltava também a venda de peixe e camarão seco. Penso que havia um ou dois pequenos atelieres, onde alguns  velhos alfaiates davam ao pedal, para confecionarem calças de terylene , ao gosto da população mais idosa . A fiscalização do mercado era da competência da edilidade da capital, que velava pela boa funcionalidade do mesmo.  Quem aqui vinha fazer compras, jamais esquecerá o enorme labirinto à volta das bancas, de quem procurava comprar bem e em conta. Ir a Xipamanine , implicava necessariamente  um passeio obrigatório ao mercado, onde nada faltava e a oferta era grande. Mas Xipamanine não era só o seu  o seu mercado, mais do que isso um imenso bairro central, onde convergiam os bairros da Mafalala, Chamanculo, Jardim e do Aeroporto. Caso para dizer ,que todos os caminhos iam ter a Xipamanine. Frente ao mercado, um enorme espaço para estacionamento e manobras ,de cargas e descargas . Figuravam também dois prédios, estando num  deles instalada uma casa de pasto, com vasta clientela.  À frente eram visíveis as paragens dos machimbombos municipais da linha 7 e 19, respetivamente com trajetos para a Praça Mac-Mahon  e Liceu Salazar (hoje Josina Machel). Ao fundo do mercado, distinguia-se um centro comercial, que agregava uma grande concentração de lojas, propriedade de comerciantes hindus , que vendiam tudo o que se relacionasse com vestuário e calçado.  Exibiam nas montras, os famosos tecidos de Caxemira e as finas sedas de Macau. Os comerciantes eram talentosos na arte de vender, que ganhava maior ênfase com a paciência beneditina, apanágio de quem estava por trás do balcão. Os compradores davam-lhe luta e isso agradava-lhes porque o cliente haveria de ser aviado , beneficiando na compra de um pequeno desconto e muito vezes até de um brinde. Numa travessa junto a um muro lateral do mercado, encontrava-se o Cinema Olimpia, onde na década 70 passavam as  grandes películas românticas originárias da India , com a sua música tradicional, obrigando a exibição dos filmes por norma a dois necessários  intervalos. No final , quando as luzes da sala de espetáculo se acendiam, era ver a plateia feminina mais sensível, a enxugar as lágrimas, com os lenços tirados nervosamente das carteiras.  Na verdade , o cinema Olimpia fez história e os seus filmes furor.  À volta do mercado, também não faltava a escola primária , frequentada por centenas de alunos, um posto médico municipal que assistia as populações de Xipamanine e outras áreas. Na traseira do mercado, lá se achava o velhinho campo de futebol, onde muitas estrelas do pontapé na bola  que viajaram para Portugal Continental , oriundas da antiga LM, mostravam o seu talento em jogos entre amigos ou clubes populares de bairros. Nos primórdios da década 70, era lá que treinava o Nova Aliança, equipa que dava nas vistas no campeonato distrital. Hoje ao que me dizem o recinto foi ocupado por vendedores ambulantes, que disputam a palmo o terreno. Recordo com nostalgia as inúmeras vezes que me desloquei até Xipamanine , transitando desde o emblemático  Largo José Albasini(hoje Praça 21 de Outubro), para a Rua dos Irmãos Roby, vasta artéria asfaltada, já na época com infinito  trânsito nas horas de ponta,  que terminava junto ao popular bazar . Direi que Xipamanine e o seu mercado eram faces da mesma moeda e, hoje tão longe no tempo e na distância, jamais se apagará do meu imaginário, a simplicidade , o sorriso e os olhos risonhos, estampados nos rosto dos  seus vendedores e dos habitantes da grande urbe suburbana . Afinal Xipamanine era o tal grande dormitório da cidade, onde o entardecer era tardio e o amanhecer, cedo de mais.

Manuel Terra