domingo, 9 de fevereiro de 2014

Eusébio e a Mafalala




A morte do grande Eusébio, reflete-me necessariamente para todo o seu brilhante historial, algo como um livro que se começa a ler de conteúdo fascinante, mas que encerra a última página com grande amargo. Para além de fabuloso futebolista, Eusébio foi o vizinho que os jovens do meu bairro (Munhuana) se orgulhavam , de quem se falava quotidianamente  pela afirmação desportiva que ia ganhando no Benfica e além fronteiras. As transmissões radiofónicas e os jornais suscitavam-nos todas as atenções. O nosso bairro, entroncava com a Av.Caldas Xavier(hoje Marien Ngouabi) com abertura para a Rua de Goa , rosto do histórico e emblemático Bairro da Mafalala, que se estendia até às zonas limítrofes de Xipamanine. Vivia-se o verão quente de 42 (curiosamente título de uma grande produção cinematográfica), quando o luar do bairro mítico se tornou mais deslumbrante, com a resplandecência de uma estrela maior que acabara de nascer; Eusébio  da Silva Ferreira era o seu nome. O Bairro da Mafalala simbolizava a união entre o desporto, arte, cultura e politica como que magia, onde habitaram José Craveirinha, grande poeta da língua de Camões, Joaquim Chissano e Samora Machel, presidentes da República de Moçambique e outros políticos africanos. Naquele espaço residencial, floresciam modestas casas de madeira e zinco, sintetizadas por construção muito similar, envoltas de acácias, coqueiros, mangueiras, cajueiros e bananeiras que lhe emprestavam uma coreografia , que só a natureza sabe tecer. Aqui e acolá situavam-se as tradicionais cantinas pintadas com cores garridas, onde as populações adquiriam géneros alimentícios. O dia a dia daquela importante área suburbana,  era a de uma urbe operária quase transformada em formigueiro, onde os homens madrugavam rumo à zona portuária , oficinas e para as obras de construção civil. Às mulheres tocava-lhes as tarefas domésticas e muitas vezes a educação dos filhos, que segundo a tradição africana,  privilegiava o amor maternal. O labirinto do caniço emanava uma alegria esfuziante, com os miúdos a correrem atrás de um aro de bicicleta, “telecomandado” com uma pequena cana, ou  verguinha metálica com gancho no fundo; o lançamento para o espaço de papagaios de papel, não esquecendo as tradicionais corridas de carros feitos de arames e latas vazias de leite condensado, trabalhados por mãos habilidosas, as mesmas que executavam sofisticadas fisgas, de elástico vermelho.  Os jogos de berlindes faziam parte da rotina, exigindo visão apurada e destreza de dedos na arte de rapar. Os adultos e anciãos  sentavam-se frequentemente no chão de pernas cruzadas , para jogar o tchuba, entretimento que consistia em introduzir pedras em buracos cavados na terra ,segundo regras próprias. Os deliciados pelo futebol, aproveitavam os lúgubres baldios de terra quase vermelha, moldados com balizas improvisadas, para disputarem com a trapeira ou uma deformada bola de borracha, partidas de grande intensidade disputados debaixo de sol escaldante e, só o pôr do sol africano ajudava então a arrefecer os seus calejados pés . Por lá passei muitas vezes , testemunhando tal vivência. Eusébio, era um menino pobre como tantos outros, que não perdia uma pelada e que acalentava ser craque de futebol. As asas do sonho trouxeram-no até Lisboa e, no Bairro da Mafalala tudo mudou, porque o génio ali nascido tornara-se gente grande, expressão tão peculiar entre os moçambicanos . Recordo as manhãs dominicais no popular bairro, de onde ecoavam as melodias de Roberto Carlos e Teixeirinha, porém à tarde era quase religioso, sintonizar os transístores para os relatos da Emissora Nacional e quando Eusébio marcava, era o delírio, transparecendo a ideia de que os seus moradores eram quase todos do Benfica. Quem já não se lembra das grandes romarias à Mafalala, aquando da conquista da Taça dos Campeões Europeus em Amesterdão  e, da vitória sobre a Coreia do Norte no Campeonato do Mundo em Inglaterra? Por curiosidade ambas por 5-3, marcas que mudaram o futebol português. Tenho ainda na mente, as vezes sem conta das deslocações da mocidade da Mafalala ao nosso bairro, para no terreno de terra solta junto ao Prédio Mari Jorge, nas tardes de sábado , participarem em jogatanas sem guerrilha tática . Uma grande árvore ali plantada, já cansada dos anos, servia-nos de hipotético balaneário. A única condição  residia no facto de todos jogarmos descalços. Os pontapés na bola começavam logo após o descanso do almoço e, só terminavam quando disparava a iluminação pública da cidade. Eusébio era uma forte motivação para nós e vezes houvera, que qualquer golo ou um lance mais criativo, merecia a citação do grande ídolo. São recordações tão latentes, que jamais se poderão apagar do meu imaginário. Fico feliz por saber que vai ser erguido no Bairro pobre da Mafalala, um museu com roteiro turístico onde ficarão perpetuadas as memórias da excentricidade humana, das figuras ilustres  que por lá nasceram e viveram. Eusébio terá seguramente um lugar de destaque.

Manuel Terra