quarta-feira, 21 de junho de 2017

Rádio Clube de Moçambique




Se algo houve que se tornou familiar e, que fez parte da identidade de várias gerações da antiga Lourenço Marques, foi certamente a rádio. Os registos reportam à década 30, quando foram construídos os primeiros estúdios do então designado Grémio dos Radiófilos. A partir das primeiras emissões, os programas da radiofusão foram adquirindo com o passar dos anos maior projeção, pelo que houve necessidade de novas instalações mais bem apetrechadas tecnologicamente, o que veio a suceder com a construção do magnificente Edifício do Rádio Clube de Moçambique, em 1951 sobranceiro ao Jardim Botânico Vasco da Gama. A montagem de vários postos emissores de longo alcance ao longo do país, possibilitou ao RCM uma cobertura além fronteiras, com tecnologia de ponta capaz de se poder ouvir em quase toda a Europa e países asiáticos. O impedimento das transmissões televisivas da RTP ou a implantação de canais privados locais, motivados por factos meramente políticos, que não pretendo neste momento escalpelizar, tornou a rádio mais mediática junto dos ouvintes moçambicanos. Com alguma nostalgia, recordo o velhinho rádio analógico de válvulas Telefunken, instalado na sala de visitas da casa dos meus pais que nos ligava ao mundo e, que nos possibilitava sintonizar várias estações radiofónicas com especial ênfase a BBC. A riqueza dos seus programas abrangia várias rubricas e cronistas, explicitadas também em inglês, como também havia especial atenção com alguns temas dirigidos às populações autóctones do interior, difundidos nos respetivos dialetos. Cresci a ouvir a rádio e não esqueço os momentos altos do desporto português, em que os relatos do futebol e hóquei em patins nos deixavam de ouvido colado à caixa mágica da telefonia. Lembro-me bem de domingo à tarde, aguardar-nos com natural expetativa a ligação à Emissora Nacional (via Marconi) para ouvir os relatos dos jogos do campeonato nacional de futebol (naquele tempo as partida começavam todas às 15 horas). Enquanto não se estabelecia a ligação, iam-se ouvindo interpretações de marchas  militares. Como imperava lá em a casa o silêncio absoluto, quando ia para o ar o Teatro em Sua Casa da autoria da Sara Pinto Coelho e as tiradas humorísticas do popular ator José Bandeira( participou  também como ator principal numa curta metragem local, o Zé do Burro) que contava com a colaboração de Milu dos Anjos, Lima Pereira e Álvaro de Lima. Grandes interpretes que deliciaram os ouvintes, sempre ávidos em os ouvirem. Tive o privilégio de conhecer as instalações do RCM, a convite do grande senhor da radio, João de Sousa depois de ter participado numa emissão de rua a partir do exterior da Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque. Na verdade era magnificente o seu interior de quatro pisos e a sua altiva torre central. A Emissora possuía uma valiosa biblioteca de discos, diversos estúdios, auditórios e salões de orquestras locais. Por lá atuavam o Coro Feminino, Orquestras de Variedades, de Salão e a Típica. O Rádio Clube de Moçambique foi a rampa de lançamento de grandes cançonetistas como a Natércia Barreto, Zito, Marinela, Aníbal Coelho, Maria Adalgisa (que também fazia locução) a voz inconfundível do grande tenor Carlos Guilherme, entre muitos outros artistas. Por trás da rádio há rostos e sobretudo o virtuosismo da comunicação, pelo que hoje ainda pareço estar a ouvir o timbre de voz do António Luís Rafael em várias intervenções, o falar pedagógico de Samuel Dabula, a locução suave e encantadora de Manuela Arraiano, a perspicácia e vivacidade com que João de Sousa analisava todos os acontecimentos que mexiam com a rádio, que o catalogou como uma lenda viva da arte de bem comunicar e exemplo de grande profissionalismo. Outros nomes houve certamente que ajudaram a construir a história do Rádio Clube de Moçambique, que ganhou maior expressão em todo o território ( há aqui que acrescentar também o papel importante também desempenhado pela Emissora do Aeroclube e Rádio Pax da Beira) aquando da expansão da radiofusão, através dos rádios transístores. Quem diria que aqueles pequenos recetores portáteis adquiridos por preços módicos, com a vantagem de serem equipados com pequenas pilhas, faria disparar os níveis de audiência de toda a programação difundida diariamente pelo RCM. A prova de isso era que aquela maravilha da tecnologia, passou a ser companhia no quotidiano de muitos moçambicanos, independentemente de ser em casa, na praia, nos cafés, nos locais de trabalho, em viagens de recreio, nos hospitais, na praia, nos recintos desportivos, prolongando-se até aos pontos mais recônditos do território. Era o fascínio da rádio, que contagiava tudo e todos. Quantos de nós, ao som das músicas em voga, não cantarolou os grandes êxitos, na rúbrica dos discos pedidos? Quantos de nós, nos momentos de insónia, não tinham na mesa de cabeceira, o pequeno rádio em que a voz do lado de lá, nos fazia companhia e ajudava adormecer. Lá longe essa inestimável companhia era de tal forma  importante, que quando desligávamos os botões dos velhos rádios elétricos ou os cursores dos transístores, significava só a despedida a um amigo, com a promessa do que no dia seguinte, teríamos novamente o RCM na nossa companhia. 

Manuel Terra

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A Mansão dos Velhos Colonos





Neste desfilar constante pelos caminhos da saudade, a cada passo surgem-me recantos daquela Lourenço Marques fascinante, onde no virar da esquina , haveria sempre uma história para contar. Achava-se tanta coisa de nós, na relação constante e afetiva com aquela terra, onde aprendemos que por trás de tudo, estavam pessoas de várias gerações que deram o melhor de si, em prol do progresso e desenvolvimento da Pérola do Índico, como alguém um dia carinhosamente lhe chamou. É das gavetas das recordações, que contemplo o belo edifício da Mansão dos Velhos Colonos. Implantado ao que consta em 1919, num vasto quarteirão que abrangia a Av. Pinheiro Chagas ( hoje Av. Eduardo Mondlane), Av. Princesa Patrícia (hoje Av. Salvador Allende) ,Av. Afonso de Albuquerque (hoje Av. Sekou Touré)  e Rua dos Velhos Colonos( hoje  Rua Francisco Malnge) . Quanto me fizeram saber, o edifício com dois pisos revelava na sua construção, alguma génese maçónica ( de referir que durante o período da vigência republicana, ilustres membros da Maçonaria deram um forte contributo, nas área da engenharia, arquitetura  e saúde, em Moçambique) serviu na fase inicial o ensino, com a designação de Instituto de Portugal. Tinha também a vertente de internato para alunos de ambos os sexos, mas que viria a ser extinto, por decisão politica após o golpe militar de 1926 ocorrido na Metrópole, era assim que se dizia e que punha fim ao ciclo da República. A Irmandade terá então cedido o espaço, por vontade própria, para a criação da chamada Mansão dos Velhos Colonos, inserida nos estatutos da Associação dos Velhos Colonos de Moçambique. Foi inaugurada solenemente a 1 de Dezembro de 1938, destinada a receber velhos colonos, assim considerados todos aqueles que no final do século XIX e, nos primórdios do século XX, viajaram para Moçambique, nos vagarosos vapores que demoravam mais de um mês a aportar ao território. Poderiam ser inscritos, os que por lá se fixaram e que tivessem para o efeito, mais de vinte e cinco anos de residência e desde que fizessem prova de falta de recursos financeiros, ou acolhimento familiar. Uma forma do Estado dar uma vida condigna, aos que na fase mais avançada da vida, careciam de carinho e acompanhamento. Porventura um maior afluxo na procura de apoio social, levou em 1946 à ampliação do edifício que acrescentou mais dois pisos, adicionados aos já existentes ( de salientar que muitos edifícios da cidade, foram projetados de forma a suportar numa fase posterior, mais andares) resultando a construção de mais camaratas, postos médicos , salas de visitas e outros departamentos. Tive a oportunidade de conhecer o seu interior e funcionalidade, durante algumas visitas proporcionadas por um ente familiar, a trabalhar na área de enfermagem. Nas salas de visitas, descortinavam-se utentes de várias nacionalidades, homens e mulheres que gostavam de contar histórias, tão ricas de conteúdo e de trajeto, tudo menos vida fácil. Quase todos os portugueses, lembravam com nostalgia  o rincão que os viu nascer ( a maioria nunca mais lá regressou) e a forma melancólica como viveram os primeiros tempos, amordaçados   ao último adeus, dos que um dia os viram partir. Rostos em que cada ruga, traduzia os trilhos de uma vida dura; gente que teve que vencer as agruras do clima, o flagelo das doenças tropicais, o isolamento do interior e habitações em regra, pouco confortáveis. Dessa forma, foram ajudando a escrever a história da sua segunda pátria, como faziam questão de dizer. Para lá da estrutura social da Mansão, a Associação dos Velhos Colonos de Moçambique lavrara nos seus estatutos, a componente cultural e desportiva. Possuía para o efeito, um amplo salão de festas, biblioteca, sala de arte fotográfica e exposições, como também ali funcionavam os serviços orgânicos. Na área do desporto, praticava-se esgrima, xadrez, ténis e natação. Na esgrima, era instrutor da modalidade um conceituado ex-praticante, nada menos do que Manuel Borrego, que conheci pessoalmente como mestre de oficinas de serralharia na Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque e, que foi campeão nacional pelo Sporting Clube de Portugal creio que em 1957 e 1958. Fez parte também da seleção olímpica portuguesa de esgrima, onde representou Portugal nos jogos Olímpicos de Roma em 1960. Existiam ainda courts de ténis, um recinto aberto polivalente e um Parque Infantil que fazia a alegria da petizada, no caso os filhos de associados. Em 1950 era inaugurada a sua piscina, onde se divulgava a prática da natação. Foi efetivamente nesta modalidade, que a AVCM passou a competir com grande visibilidade nas provas oficiais, mantendo uma sã rivalidade com a secção do GDLM, competindo também com nadadores do CFM e SCLM. Nomes como o de Eduardo Horta, João Rocha, Eduardo Murinelo, Cabanelas, Amélia Sampaio e muitos outros à época, ajudaram a natação da AVCM a construir a sua brilhante história, que muitos certamente testemunharam. Hoje a sua piscina, é pertence da Associação Natação de Maputo. Ainda me recordo das participadas e animadas sessões de bingo, que tinham lugar no seu salão de festas. É esse passado vivo que retenho na memória, de homens e mulheres de todas as raças, pioneiros que no auge da vida adulta, arregaçaram as mangas e trabalhando arduamente, atulharam pântanos e desbravaram terras, construtores de uma cidade embrionária, que se haveria de transformar numa das mais belas e concebidas cidades de toda a África, orgulho das gerações vindouras. Hoje o Edifício da Mansão, sofreu obras de remodelação, havendo o cuidado (apenas com ligeiras alterações) de manter a arquitetura das suas fachadas. A da entrada principal, achada no cruzamento da Av. Pinheiro Chagas com a Av. Princesa Patrícia, serve a Faculdade de Educação Física da Universidade Pedagógica e a antiga entrada de utentes, no cruzamento da Av. Afonso de Albuquerque com a Rua dos Velhos Colonos, dá corpo à Sede do Ministério da Mulher e Ação Social. Nada que retire porém a quem a conheceu, a magnificência da sua construção.

Manuel Terra