terça-feira, 11 de novembro de 2014

As cervejas moçambicanas




Voltando ao persistente hábito das incursões aos tempos da minha mocidade, recheada de recordações que se perfilam como retratos fixados no álbum da vida, quase sempre esmiuçadas numa roda de amigos entre dois dedos de conversa. Os temas jamais se esgotam e, muito menos têm limites. A metáfora de hoje traz-me à memória as cervejas moçambicanas de excelente quilate, a projetarem a imagem da pérola do índico e que ajudaram a contar muitas histórias daqueles que lá nasceram ou um dia lá viveram . Ao ler os canais de informação lusófonos, rejubilei ao constatar que a empresa Cervejas de Moçambique, que detém os direitos produção da Laurentina e 2M está já  a exportar para a África do Sul e Portugal, as cervejas do meu tempo. Mais antiga a Laurentina, em homenagem aos” laurentinos” também conhecidos como “cocacolas” assim eram chamados os naturais da antiga Lourenço Marques. Nos meados da década 60 surgiu no mercado a marca 2M, focando a histórica decisão do marechal Patrice Maurice, conde de Mac-Mahon, então presidente da república de França que em 1875 decidiu a favor de Portugal numa disputa com a Grã-Bretanha, relativamente à posse da região sul do território moçambicano. Havia ainda uma outra cerveja a Manica, de bom paladar produzida na cidade da Beira. A Laurentina era a mais afamada e, quem já não se lembra daquelas garrafas douradas por fora e de ouro por dentro, numa alusão ao bem conseguido spot publicitário de ocasião, radiofundido frequentemente pelo Rádio Clube local. Perdura no tempo o hábito nas muitas esplanadas de snack-bar e restaurantes  , proporcionar aos seus frequentadores sempre que fosse pedida uma cerveja em garrafa ou em copo, o acompanhamento de um pequeno prato com camarões ou dobrada, amendoins torrados e tremoços ,de forma graciosa. A cerveja  acompanhavam bem toda a gastronomia portuguesa, usada também como ingrediente na confeção de muitos pratos, mas na cozinha moçambicana e goesa funcionavam como uma espécie de pronto socorro para abafar o ardor do malandro piripiri. Bailam-me na mente a famosa galinha á cafreal no Piri-Piri  e no Coimbra que não dispensavam o emborcar de uma cervejolas bem fresquinhas a escorrerem suavemente pela garganta, como também o acompanhamento aos bons combinados da Cristal e dos maravilhosos camarões da Marisqueira da Baixa e do Alto Maé, da Imperial, do Costa do Sol, Ponto Final, Marisol (na Catembe) e de outros pontos de referência da restauração da capital. Não me poderia esquecer jamais da célebre Cervejaria Nacional (propriedade das Cervejas Reunidas) localizada na antiga avenida Paiva Manso(hoje Filipe Magaya) lugar de confraternização de muitos adolescentes, especialmente em dias de aniversário, onde os jovens apostavam no bitoque da casa , prato servido de forma abastada e confecionado a bom gosto .Era frequente neste espaço, os mais espigadotes trocarem os  refrigerantes por umas geladinhas Laurentinas, numa atitude de afirmação ao estado  adulto. De facto a Laurentina apostava forte na estratégia do marketing, estabelecendo uma relação de paixão entre a marca e o consumidor . Afinal beber uma cerveja ou um copo foi sempre um bom argumento para juntar à mesa, familiares, colegas e amigos. A sua excêntrica qualidade também não escapava aos milhares de turistas  sul-africanos, que de férias na época balnear a consumiam por vezes com alguma exuberância no parque de Campismo, contíguo ao Restaurante e Snack Bar Miramar junto à praia com o mesmo nome. A exibição do seu logótipo era constante em muitos reclamos de estabelecimentos de restauração, parques desportivos e pinturas laterias nos prédios altos da antiga LM. Quem não se lembra das tardes dançantes de bairros e clubes, patrocinadas pela cervejeira moçambicana? Também não esqueço as visitas de estudo da malta da Escola Industrial à Fabrica de Cervejas Reunidas, localizada na Baixa na Av. da República(hoje 25 de Setembro) no cruzamento com a General Machado( hoje Guerra Popular)que nos proporcionava no final, a desejada passagem pelo refeitório. Éramo-nos servidas sandes de carne assada e churrasco e dos tanques para as canecas, jorrava cerveja efervescente que fazia as delícias de todos. Cá fora ainda se sentia o cheiro forte da cevada, expelida da zona de moagem. Lembro-me também do Senhor Melo da administração da FCR, a quem recorríamos nas vésperas de eventos desportivos de bairro, para oferta de camisolas de manga curta (era assim que se dizia na época) com o design da Laurentina, tonalizadas quase sempre de cor amarela. Seria injusto também não referir as visitas, em minibus da própria empresa à fabrica concorrente, a 2M erguida na Estrada do Influene com modernas instalações. Depois de tudo visionado e recolhidos os apontamentos, abriam-se as portas do refeitório e lá estavam também as sandes de carne assada e frango de churrasco à espera da rapaziada, que aconchegando o estômago e saciando a sede, dava de seguida largas à sua alegria. Era a expressão comum da juventude, na plenitude da sua sã irreverência. O correr dos anos não nos pode separar do passado e agora só me resta passar pelas prateleiras de uma grande superfície comercial, para o desejado ponto de encontro com a cerveja Laurentina em todas as suas versões ou a 2M e, desfrutar do belo paladar das cervejas daquela amada terra africana. Certamente que recordações não faltarão

Manuel Terrra

sábado, 17 de maio de 2014

Fonte Luminosa




O tempo passa, mas as recordações que trazem à memoria os bons momentos e emoções vividas naquela terra maravilhosa, são a expressão de um sentimento nostálgico transformado em paixão eterna e fascinante. Sempre que se encontra gente moçambicana, entre dois dedos de conversa, as palavras soltam a exercitação da memória e inevitavelmente as conversas tornam-se mais efusivas quando se pronuncia o ponto de encontro de outrora. Lembrei-me há dias da Fonte Luminosa, localizada no prolongamento da Av. da República (hoje Av. 25 de Setembro) já muito próxima do Clube Naval ,de onde rompia a Estrada da Marginal que ligava à Costa do Sol. A evocação tem muito a ver com o meu saudoso pai, a quem  competia garantir a manutenção e funcionamento dos repuxos luminosos. A Fonte Luminosa só funcionava aos fins de semana, dado que a rede elétrica não era extensível ao local, razão pela qual o meu progenitor tinha a responsabilidade de acionar um velho gerador, poluente e já rouco de tantas horas de trabalho, silenciado apenas com a entrada da madrugada.  Por lá passei na companhia dos meus irmãos, sábados, domingos e feriados e, para que o meu pai não ficasse privado do contato com a família, a minha mãe transportávamo-nos até ao imenso terreno marginado de eucaliptos , onde figuravam o recinto do motor e uma pequena dependência construída a tijolo, enegrecido pelo fumo e gazes expelidos pelo gerador. Quase como um planalto, avistava-se a Barreira da Maxaquene que estabelecia a ligação à baixa citadina. Para nós eram dias maravilhosos de corridas loucas e sinuosas por entre as portentosas árvores, como que correndo atrás de qualquer ilusão. Uma bola fazia parte da nossa companhia e dos muitos sonhos de infância. Recordo que ao cair da tarde, caso as traquinices fossem bem toleradas, tínhamos como prémio os deliciosos sorvetes vendidos do outro lado da artéria, no Quiosque da Socigel. Nessa imensa floresta eucaliptal , quem já não se lembra da realização de festas populares, com o requinte de qualquer romaria da longínqua Metrópole ? Tinha ali lugar a festa que venerava o Senhor da Pedra Pequenino, uma autêntica romaria que arrastava os que para lá partiram e os laurentinos. Eram montados tasquinhas de “comes e bebes” e stands para a venda de rifas e um palco por onde passavam artistas locais, não faltando como era previsível as atuações de inúmeros ranchos folclóricos em representação de várias regiões de Portugal Continental. Nas árvores eram montados os alto-falantes  que difundiam musica popular portuguesa, em voga. No ar pairava o cheiro e fumaça vindo dos assadores das sardinhas, acompanhadas de broa e pão centeio. As fêveras e o caldo verde tinham igualmente saída, assim como todos os pratos da cozinha tradicional portuguesa. O que não poderia faltar era o bom vinho tinto, que jorrava das pipas para as canecas e depois para os copos dos romeiros , que ajudava de sobremaneira a radiar a alegria incontida de quem não esquecia as raízes que os ligavam ao seu torrão natal. Era assim de uma  forma apaixonada, que em Moçambique a africanidade conjugava na perfeição, com a tradição e crença dos seus habitantes. São estas relações com a Pérola do Índico e as visões tão permanentes, que me fazem acreditar que o caminho com o passado, não é assim tão distante.

Manuel Terra

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Eusébio e a Mafalala




A morte do grande Eusébio, reflete-me necessariamente para todo o seu brilhante historial, algo como um livro que se começa a ler de conteúdo fascinante, mas que encerra a última página com grande amargo. Para além de fabuloso futebolista, Eusébio foi o vizinho que os jovens do meu bairro (Munhuana) se orgulhavam , de quem se falava quotidianamente  pela afirmação desportiva que ia ganhando no Benfica e além fronteiras. As transmissões radiofónicas e os jornais suscitavam-nos todas as atenções. O nosso bairro, entroncava com a Av.Caldas Xavier(hoje Marien Ngouabi) com abertura para a Rua de Goa , rosto do histórico e emblemático Bairro da Mafalala, que se estendia até às zonas limítrofes de Xipamanine. Vivia-se o verão quente de 42 (curiosamente título de uma grande produção cinematográfica), quando o luar do bairro mítico se tornou mais deslumbrante, com a resplandecência de uma estrela maior que acabara de nascer; Eusébio  da Silva Ferreira era o seu nome. O Bairro da Mafalala simbolizava a união entre o desporto, arte, cultura e politica como que magia, onde habitaram José Craveirinha, grande poeta da língua de Camões, Joaquim Chissano e Samora Machel, presidentes da República de Moçambique e outros políticos africanos. Naquele espaço residencial, floresciam modestas casas de madeira e zinco, sintetizadas por construção muito similar, envoltas de acácias, coqueiros, mangueiras, cajueiros e bananeiras que lhe emprestavam uma coreografia , que só a natureza sabe tecer. Aqui e acolá situavam-se as tradicionais cantinas pintadas com cores garridas, onde as populações adquiriam géneros alimentícios. O dia a dia daquela importante área suburbana,  era a de uma urbe operária quase transformada em formigueiro, onde os homens madrugavam rumo à zona portuária , oficinas e para as obras de construção civil. Às mulheres tocava-lhes as tarefas domésticas e muitas vezes a educação dos filhos, que segundo a tradição africana,  privilegiava o amor maternal. O labirinto do caniço emanava uma alegria esfuziante, com os miúdos a correrem atrás de um aro de bicicleta, “telecomandado” com uma pequena cana, ou  verguinha metálica com gancho no fundo; o lançamento para o espaço de papagaios de papel, não esquecendo as tradicionais corridas de carros feitos de arames e latas vazias de leite condensado, trabalhados por mãos habilidosas, as mesmas que executavam sofisticadas fisgas, de elástico vermelho.  Os jogos de berlindes faziam parte da rotina, exigindo visão apurada e destreza de dedos na arte de rapar. Os adultos e anciãos  sentavam-se frequentemente no chão de pernas cruzadas , para jogar o tchuba, entretimento que consistia em introduzir pedras em buracos cavados na terra ,segundo regras próprias. Os deliciados pelo futebol, aproveitavam os lúgubres baldios de terra quase vermelha, moldados com balizas improvisadas, para disputarem com a trapeira ou uma deformada bola de borracha, partidas de grande intensidade disputados debaixo de sol escaldante e, só o pôr do sol africano ajudava então a arrefecer os seus calejados pés . Por lá passei muitas vezes , testemunhando tal vivência. Eusébio, era um menino pobre como tantos outros, que não perdia uma pelada e que acalentava ser craque de futebol. As asas do sonho trouxeram-no até Lisboa e, no Bairro da Mafalala tudo mudou, porque o génio ali nascido tornara-se gente grande, expressão tão peculiar entre os moçambicanos . Recordo as manhãs dominicais no popular bairro, de onde ecoavam as melodias de Roberto Carlos e Teixeirinha, porém à tarde era quase religioso, sintonizar os transístores para os relatos da Emissora Nacional e quando Eusébio marcava, era o delírio, transparecendo a ideia de que os seus moradores eram quase todos do Benfica. Quem já não se lembra das grandes romarias à Mafalala, aquando da conquista da Taça dos Campeões Europeus em Amesterdão  e, da vitória sobre a Coreia do Norte no Campeonato do Mundo em Inglaterra? Por curiosidade ambas por 5-3, marcas que mudaram o futebol português. Tenho ainda na mente, as vezes sem conta das deslocações da mocidade da Mafalala ao nosso bairro, para no terreno de terra solta junto ao Prédio Mari Jorge, nas tardes de sábado , participarem em jogatanas sem guerrilha tática . Uma grande árvore ali plantada, já cansada dos anos, servia-nos de hipotético balaneário. A única condição  residia no facto de todos jogarmos descalços. Os pontapés na bola começavam logo após o descanso do almoço e, só terminavam quando disparava a iluminação pública da cidade. Eusébio era uma forte motivação para nós e vezes houvera, que qualquer golo ou um lance mais criativo, merecia a citação do grande ídolo. São recordações tão latentes, que jamais se poderão apagar do meu imaginário. Fico feliz por saber que vai ser erguido no Bairro pobre da Mafalala, um museu com roteiro turístico onde ficarão perpetuadas as memórias da excentricidade humana, das figuras ilustres  que por lá nasceram e viveram. Eusébio terá seguramente um lugar de destaque.

Manuel Terra